Quentin Tarantino e o feminismo | Uma análise sobre “À Prova de Morte”

No meio do ano me formei em Comunicação Social – Rádio e TV. Para minha monografia eu sempre soube que o tema seria algo envolvendo Cinema. Fiquei em dúvida por muito tempo, pensei em fazer sobre Chaplin, meu diretor favorito, mas foi quando fizemos um post sobre os 50 anos de Quentin Tarantino que defini: “vou falar sobre a defesa das minorias na filmografia do Taranta”. Com ajuda da minha querida orientadora e professora Verônica Toste, escolhi três filmes da filmografia de Tarantino para análise. À Prova de Morte foi o meu escolhido para falar sobre as mulheres e o feminismo. No entanto, quem conhece a filmografia de Tarantino deve concordar comigo: seria possível falar sobre todos eles, praticamente. Jackie Brown, Kill Bill, Bastardos Inglórios, todos eles possuem personagens femininas fortíssimas, sendo que os dois primeiros são protagonizados por mulheres.

Por que escolhi, dentre os citados, À Prova de Morte? Vamos lá… Editei, diminuí e transformei o capítulo da minha monografia em um texto menos “sisudo” (assim espero!). E atenção: contém spoilers.

O filme é protagonizado por dois grupos de mulheres e há uma divisão de partes dentro dele. Na primeira metade do filme, Tarantino usa efeitos para reproduzir cores desgastadas, chuviscos e simular pulos na película, remetendo a um filme da década de 1970. Entre a primeira e a segunda parte, além de uma elipse temporal, uma transição em preto e branco conduz em seguida o espectador a uma outra estética, em que a saturação de cores retorna, mas dessa vez sem granulações ou chuviscos, o que remete aos filmes contemporâneos. Embora de acordo com a cartela que separa as duas partes tenham transcorrido apenas 14 meses entre a primeira e a segunda parte do filme, a audiência tem a impressão de ter assistido a um filme antigo seguido de um filme de realização recente.DeathProof3

Essa demarcação é mais que uma passagem do tempo, é uma mudança de era. É como se Tarantino reproduzisse um filme slasher tradicional na primeira metade de À Prova de Morte, com um desfecho trágico em que as mocinhas morrem, e fizesse uma releitura contemporânea na segunda, encerrada pela vitória das mulheres. É possível argumentar ainda que os dois grupos de mulheres, embora compartilhem características comuns como falar palavrões, beber, gostar de se divertir e fazer sexo, se distinguem por uma característica evidente: o primeiro grupo parece ter se beneficiado de algumas das conquistas do feminismo sem, contudo, abraçá-lo em todas as suas consequências, enquanto o segundo grupo de mulheres não apenas desfruta de maior liberdade sexual, profissional e comportamental, como também articula um discurso feminista e age conforme preceitos importantes do feminismo.

Com o primeiro grupo de mulheres, em seus diálogos sobre amor e sexo, elas representam a relação sexual como uma entrega, que deve ser feita com cuidado e economia, de modo a conquistar o afeto e respeito dos homens. Seu universo parece gravitar excessivamente em torno da necessidade de obter a atenção masculina, o que fica evidenciado pela permanente troca de SMS entre Julia (Sydney Tamiia Poitier) e um caso mal-resolvido, a expectativa de Arlene (Vanessa Ferlito) de conhecer algum sujeito interessante até o fim da noite e o fato de seus diálogos se travarem quase invariavelmente em torno de homens e expectativas de romance. Quando o grupo se depara com a personagem Pam (Rose McGowan) em um bar, Jungle Julia debocha e fala mal da conhecida para suas amigas. Pam, por sua vez, se engaja em um discurso slut-shaming (ato de desqualificar ou inferiorizar uma mulher a partir de acusações de licenciosidade sexual, como ter um grande número de parceiros sexuais, ter relações sexuais extra-maritais ou casuais, ou agir e se vestir de forma considerada excessivamente sexual), dirigido contra Julia, que depois é devolvido pelo grupo de amigas através de insinuações de cunho sexual.

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Há um personagem presente nas duas partes do filme: Dublê Mike (Stuntman Mike, Kurt Russell), um misógino que persegue ambos os grupos de mulheres para assassiná-las. Mike é bem sucedido com o primeiro grupo, matando-as em um terrível acidente de carro. Tarantino, aqui, lança um discurso em favor das mulheres através do xerife que analisa o caso:

Bem, eu acho que é um lance sexual. É a única coisa que vejo. Impacto em alta velocidade, metal torcido, vidro quebrado, todas as quatro almas levadas exatamente ao mesmo tempo. Provavelmente, o único jeito que aquele degenerado consegue o dele. Acho que só podemos sonhar em pegar aquele maldito com um homicídio culposo veicular pela carona na caixa de morte. Aquilo tudo foi uma brincadeira arriscada e descuidada. Mas tem um maldito barman que vai testemunhar que o dublê Mike não bebeu nada a noite inteira e que a passageira foi deixada lá pelo namorado, na maldita chuva e ainda foi ela quem pediu a carona para ele. Agora, no papel, vai parecer que ele só tentava ajudá-la. Quero dizer, é assim que o júri vai ver isso.

No entanto, o xerife não parece muito disposto a conduzir uma investigação e levar Mike ao tribunal. Tarantino sinaliza nesse sentido que, embora possam eventualmente encontrar solidariedade em alguns homens, as mulheres devem enfrentar elas próprias a opressão. Mike sobrevive ao acidente e ocorre a passagem de tempo. Agora, ele está obcecado com o novo grupo de mulheres, e passa a persegui-las. Com elas, a mesma temática da ideia de entrega sexual aparece, mas dessa vez o discurso sustentado por uma das personagens de que a mulher deve simular “virtude” e adiar o sexo para obter respeito é interpretado pelas amigas como infantilidade. “Ele está agindo como um homem, e você como uma garotinha de 12 anos”, diz uma delas. Ainda mais interessante é constatar que a personagem que revela ter mais de um “caso” em curso não é repreendida pelas amigas e que a personagem de Kim (Tracie Thoms), que agora namora um homem recém-saído de outro relacionamento, rejeita a ideia de que uma mulher possa “roubar” o homem de outra. “Eu não roubei nenhum deles, eles só vieram a bordo”, diz. São mulheres que não enxergam umas às outras como rivais, não culpam as outras por seus insucessos amorosos e não veem o sexo como algo que a mulher faz para conquistar o afeto de um homem, mas como uma fonte de prazer para ambos, que eventualmente pode resultar em envolvimento afetivo. Zoë (Zoë Bell), por sua vez, é uma mulher assumidamente homossexual, que tem com Kim uma relação de amizade e sexo.

Sentadas em um diner, as amigas conversam ainda sobre o fato de Kim carregar uma pistola Rascal. Censurada pelas amigas por andar armada, a personagem retruca:

– Olha, eu não sei em que utopia futurística vocês vivem, mas no mundo em que eu vivo, uma mulher (a bitch) precisa de uma arma. (…) Se eu descer à lavanderia do prédio à meia-noite com frequência eu posso ser estuprada.

– Então não lave a sua roupa à meia-noite!

– Foda-se! Eu quero lavar minhas roupas a hora que eu quiser!


Suas conversas não giram unicamente em torno de homens, sexo e relacionamentos. Kim e Zöe compartilham com as amigas sua paixão e entusiasmo por carros e filmes de corrida. Inclusive, o carro utilizado por elas no início dialoga com outro filme de Tarantino: Kill Bill. A cor amarela e as faixas pretas fazem referência ao figurino utilizado por Uma Thurman. Entusiastas de um filme de carros chamado Vanishing Point, as duas querem alugar o mesmo modelo de carro utilizado nele – um Dodge Challenger branco – e, como são dublês profissionais, protagonizar algumas de suas cenas mais perigosas. Nas cenas que se seguem, as personagens conseguem obter o carro e Zöe faz uma brincadeira perigosa denominada “mastro do navio”, que consiste em permanecer em cima da parte frontal do carro em movimento, segurando-se apenas em dois cintos cruzados nas laterais do veículo. Assim, as personagens revelam-se fãs de filmes de carros de corrida, algo que no senso comum é um interesse exclusivamente masculino.

Mike inicia então sua perseguição homicida ao grupo de mulheres, e segue-se uma longa cena de carros em velocidade, que quase culmina na morte de Zöe, que durante todo o tempo permanece se equilibrando em cima do Dodge Challenger das amigas. Projetada do carro na última colisão, Zöe não sofre um arranhão sequer, dado o seu talento como dublê. Mike encontrou rivais à sua altura e, não conseguindo matá-las na primeira batida, elas passam a perseguir Mike de carro em uma cena típica de filmes de ação. Unidas em irmandade, as mulheres agora iniciam sua vingança. A motorista Kim se regozija e profere insultos contra Mike que sugerem uma vingança sexual: “Eu sou a filha da puta mais cheia de tesão dessa estrada” (“I’m the horniest motherfucker on the Road”); “Eu vou dar um tapa naquela bunda” (“I’m gonna slap that ass”); “Você sabe que não posso te deixar ir embora sem dar um tapa nessa bunda” (“You know I can’t let you go without slapping that ass”), em referência à traseira do carro de Mike. Durante a perseguição, Mike bate e seu carro capota. Acovardado, tenta fugir, mas elas conseguem pará-lo e o espancam até ele cair no chão, quando o filme acaba.

Não muito afeito a lições de moral, Tarantino acaba por introduzir uma lição sutil neste filme. As garotas que se apropriaram de algumas conquistas do feminismo sem, contudo, abraçar o feminismo em si, terminam mortas nas mãos de um homem misógino, ou seja, vítimas do patriarcado. É sintomático o fato de Pam ter morrido na “caixa da morte” ao lado do próprio assassino Mike, antes da colisão com o veículo das outras quatro mulheres. Era para ele que Pam expusera minutos antes no bar sua antiga rixa com Jungle Julia. Podemos interpretar isso como se Tarantino dissesse que se engajar em slut-shaming e em rivalidades femininas é ficar do lado do machismo e, consequentemente, tornar-se vítima dele. O segundo grupo de mulheres, unido em irmandade, contrário a discursos divisivos como o slut-shaming ou avesso à visão de homens e mulheres como pessoas fundamentalmente distintas e guiadas por interesses antagônicos (no sexo e no amor, por exemplo), acaba por triunfar coletivamente perante a misoginia e celebrar a derrota do machismo.

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