Silêncio | Crítica

Adaptar para o cinema a obra-prima de Shusaku Endo sobre o fim melancólico das missões jesuítas ao Japão deve ter parecido uma tarefa impossível para a maioria dos familiarizados com o livro. Ao mesmo tempo em que muito do que se passa com os personagens tem ecos internos complicadíssimos de se traduzir em uma linguagem cinematográfica, as próprias reflexões da narrativa, que trata a todo momento de temas como fé, religiosidade e autonomia cultural, podem parecer pouco importantes para uma audiência atual sem interesse em formular as perguntas que eventualmente tomam conta da jornada do protagonista.

Mas é claro que são todas elas questões que tocam um cineasta em especial. Martin Scorsese, quesempre deixou clara sua origem profundamente religiosa, lutou durante anos para levar a história às telas, o que só torna ainda mais triste a recepção pouco calorosa (aliás, quase inexistente) que Silêncio recebeu em sua estreia.

Apesar de ter problemas, o longa não merecia tal destino. Em sua maior parte, a narrativa é uma adaptação bastante fiel do romance original e acompanha a trajetória do padre Rodrigues (Andrew Garfield) em um conto de desespero e autoquestionamento constantes, sem tecer grandes julgamentos positivos ou negativos sobre sua figura (quer dizer, pelo menos até os últimos dez minutos).

O que é importante entender sobre a história criada por Endo é que não se trata apenas de explorar o sofrimento de padres e cristãos japoneses na terrível perseguição que se estabeleceu no século 17, mas também de demonstrar a inutilidade dos esforços daquelas pessoas para desafiar uma realidade pouco favorável a suas aspirações “elevadas”.

Inicialmente, Rodrigues olha para si como para alguém que habita à sombra de Jesus Cristo. Em sua arrogância e certeza de representar uma verdade universal, não admira que ele se compare à figura de Jesus e, em dado momento, até mesmo acredite incorporá-la. Esse não é, no entanto, o papel que lhe cabe representar.

O longa, como era de se esperar, ignora sutilezas presentes no livro, como os detalhes que pouco a pouco vão mostrando que a fé pregada pelos missionários está longe de ser a mesma seguida pelos japoneses. O excesso de exposição também acaba sendo inevitável, já que há elementos desconhecidos da cultura que necessitam de explicação e movimentos internos dos personagens que precisam ser verbalizados em tela.

Na figura calma e sorridente do inquisidor Inoue (Issey Ogata), Rodrigues e o filme encontram uma força opositora que revela com maestria as rachaduras no raciocínio dos membros da Igreja. Scorsese é inteligente ao colocar a dúvida do protagonista como um lembrete constante, seja com a constante presença do fraco e incansável Kichijiro (Yōsuke Kubozuka), que parece lembrar Rodrigues de uma parte menos nobre de si mesmo, seja com a sombra do padre Ferreira (Liam Neeson), um missionário mitológico cuja possível queda representa o maior medo do protagonista: o de sua própria força não resistir à fraqueza do mestre.

Scorsese, grande conhecedor do livro que deu origem ao filme, estabelece tudo isso com a habilidade que lhe é característica, e cria uma narrativa que é reflexiva, mas também fortemente violenta, sem apresentar respostas fáceis.

O triste é que o cineasta não é capaz de concluir a obra com essa mesma nota de dubiedade, acabando por trair seus próprios sentimentos em um fim que pedia uma mão mais leve e menos óbvia. Talvez não tenha sido essa a intenção, mas a escolha desnivela a balança que havia sido cuidadosamente construída até então.

Cotação-4-5

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