Asterios Polyp, uma autêntica obra de arte

250px-Asterios-polyp-bookcoverOs quadrinhos são uma mídia essencialmente gráfica. Não restam dúvidas de que o apelo do desenho é muito maior do que o dos diálogos. Nisto a chamada Nona Arte se assemelha muito com a Sétima, já que no cinema a imagem é mais poderosa que o som. Isto, no entanto, não diminui a importância dos elementos “mais fracos”, e as verdadeiras obras-primas são aquelas que conseguem atingir uma perfeita consonância entre o visual e o narrativo. Neste sentido a graphic novel Asterios Polyp, de David Mazzucchelli (desenhista de Batman – Ano Um), com certeza está incluída neste seleto grupo.

Asterios Polyp é um renomado arquiteto que passa a repensar toda a maneira com que encara a vida depois de uma súbita tragédia que se abate sobre ele. A narrativa intercala momentos do passado arrogante do personagem-título e o seu atual momento de reflexão, passando eventualmente por curiosas sequências oníricas que revelam seus conflitos e neuras.

O que chama atenção mesmo na graphic novel são as soluções visuais simplesmente brilhantes que Mazzucchelli (que também assina o roteiro) encontra para ressaltar as dinâmicas dramáticas da trama. Demonstrando discordar da visão meramente dualística de seu protagonista (mais sobre isso adiante), o autor “veste” cada personagem que atravessa sua história com um determinado traço de desenho e um formato distinto de balão e fonte. Na verdade, Mazzucchelli parece acreditar que cada indivíduo constitui um universo próprio distinto dos demais, e que as relações humanas seriam apenas pequenas intersecções entre estes. Isto fica notório em determinados momentos-chave onde este conceito é radicalizado dando formatos surreais aos personagens, ressaltando a diferença gritante que existe entre eles.

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A característica mais forte de Asterios é sua arrogância. Sempre assumindo suas idéias como superiores à dos outros, ele acaba por sufocar cada pessoa que se aproxima, e não é à toa que quando Mazzucchelli o desenha em sua “forma surreal” geralmente grande parte do cenário assume o mesmo traço, mostrando todo o poder que o arquiteto tem de dobrar tudo em volta à sua visão. Entretanto a realidade é que o personagem sente um grande vazio dentro de si, uma sensação de incompletude, e este fato é ressaltado através de vários simbolismos ao longo da narrativa, como o fato da história ser narrada por seu gêmeo natimorto, pelo fato de nenhum dos seus projetos como arquiteto terem saído de fato do papel ou pelo seu sobrenome ser incompleto.

Outra característica do protagonista que é constantemente retratada na grafic novel em diversos aspectos é a sua filosofia dualística. Asterios enxerga a realidade sempre como um composto de dois extremos. Não à toa que seu traço remete ao bidimensional, com seu rosto sempre aparecendo de perfil. Podemos observar em diversos momentos o autor retratando esta visão de “dois opostos que se complementam”, seja incluindo quadrinhos espelhados ou invocando o símbolo do Yin Yang ao desenhar seus personagens em posições fetais invertidas. Mesmo a profissão de arquiteto se revela como uma interessante escolha, já que retrata simultanetamente tanto a paixão do personagem pela criatividade e pela imaginação quanto sua obsessão por ordem e padrões. Opostos, mas complementares.asterios-dualidade

holofoteAssim sendo, acaba sendo importante para o autor contar também a história daquela que acabaria por se tornar o oposto complementar de Asterios: sua esposa Hanna. Diferentemente do marido, acostumado a adulações e sucesso, ela cresceu em meio a um ambiente que sempre a protelava, ainda que seus talentos fossem bastante expressivos. Mazzucchelli resume de forma brilhante isso ao desenhar a personagem triste nas sombras enquanto um forte holofote se recusa a iluminá-la. O resultado é que Hanna se torna, por mais meiga e doce que seja, uma mulher introspectiva, que sofre em silêncio com a falta de atenção do seu marido, cujo ego não deixa que ele enxergue sua carência.

A dinâmica existente entre o casal, aliás, é um aspecto da história que é sutilmente representado pelas cores que o autor emprega nos dois personagens. Inicialmente Asterios é apresentado fortemente identificado pelo azul, que retrata sua racionalidade fria e distante, enquanto Hanna aparece com um tom avermelhado, que evoca tanto sua natureza mais emocional quanto seu estado caótico de necessidade de ser reconhecida. Não à toa sua “forma surreal” surge quando ela explode, tornando-se literalmente “vermelha de raiva”.

A medida que o casamento vai se desenvolvendo, no entanto, esta lógica muda. Num momento de paz, por exemplo, Mazzucchelli veste Asterios com um pulôver vermelho com listras azuis para representar a união que este sente ter com a mulher (no entanto Hanna é vestida completamente de azul, o que já denota o total domínio do marido sobre ela). E se em determinado momento Asterios passa a se sentir rejeitado e os papéis entre os dois se invertem, estando a esposa distante e o marido carente, suas cores também ficam invertidas.

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Este conflito de cores acaba quando a história volta sua atenção para o presente, onde Asterios vive num momento de redefinição. Ali a cor dominante é o amarelo, uma cor quente que denota a descoberta do lado emocional do personagem. O simbolismo máximo deste aspecto é ilustrado por um novo nascer do sol, trazendo uma renovação na vida do protagonista. Não à toa, Asterios deixa de ser o arrogante “arquiteto de papel” e constrói de próprio punho uma simples casa na árvore. Até larga o cigarro, e o fato passa desapercebido tanto pelo personagem quanto pelo leitor, apenas se fazendo notar quando determinada pessoa o cita.

Existem inúmeros outros simbolismos e cenas absolutamente geniais espalhadas ao longo da graphic novel, o que a torna ímpar em riqueza de detalhes. Sem dúvida alguma, trata-se de uma autêntica obra de arte.

Asterios Polyp foi lançado no Brasil este ano pela editora Companhia das Letras.

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